segunda-feira, 16 de março de 2009

Lembranças de artigo de 42 anos de Fernando de Noronha (Helio Fernandes)

Reflexões, recordações e síntese da Frente Ampla

Há precisamente 365 dias, a Frente Ampla dá manchetes, comentários de jornal, revistas, rádio e TV e discursos no Parlamento, além de acesos e prolongados debates na ARENA e no MDB. E todos insistem em dizer que ela não existe. A primeira reunião oficial da Frente Ampla se deu no dia 22 de agosto de 1966 e escrevo estas notas em Fernando de Noronha precisamente no dia em que ela comemora o seu primeiro ano de existência. São portanto 365 dias que enchem páginas e mais páginas de jornais.

Apesar de sua primeira reunião ter se realizado a 22 de agosto, a ideia surgiu muito antes, movimentada exclusivamente por dois homens: Helio Fernandes e Rafael de Almeida Magalhães. Fizemos os primeiros contatos, conversamos com alguns líderes, a ideia era estruturar um movimento englobando todas as lideranças civis para um diálogo válido com grupos militares mais abertos e predispostos ao diálogo. E, como era óbvio, a ideia desse diálogo não tinha nenhuma intenção nem qualquer sentido de revanchismo ou de provocação, como diz agora o ex-"vice-governador", movido pelo seu colossal carreirismo e pela certeza da afirmação que ele fez ao sr. Carlos Lacerda na minha casa, no dia em que abandonando os companheiros que acreditaram nele ingressou na ARENA: "Olha, Carlos, os militares vão dominar o governo por 50 anos e eu não quero ficar de fora". Essa conversa a três (eu, Lacerda e Rafael) durou de 9 da noite às 6 da manhã, já dia claro, quando fui levar os dois em casa. Lacerda estava sem carro e Rafael não sabe dirigir automóvel.

Mas voltemos à Frente Ampla. Uma noite, estando no governo (Carlos Lacerda havia se licenciado), eram mais ou menos 22 horas quando Rafael me telefonou. Eu estava no jornal e ele me disse: "Vou te apanhar para jantar no Albamar e depois vamos para a casa do Carlos, pois precisamos ter uma conversa muito séria com ele". Rafael me apanhou, e enquanto jantávamos me contou a sua idéia: promover um encontro Lacerda-Juscelino. Afirmou-me que mantivera contatos com líderes juscelinistas e que a receptividade fora excelente.

Acabamos de jantar e seguimos para a casa de Lacerda. Rafael, com aquele seu jeito de Benedito Valadares moço, de José Maria Alkmin menos silencioso e mais palrador, foi rodando, rodando, até chegar no assunto. E quando chegou ao ponto central e contou a Carlos Lacerda os seus contatos na área juscelinista e a necessidade de um encontro dele com o ex-presidente, veio a resposta de Lacerda, dura e liquidante: "Lá vem você com o seu maquiavelismo, Rafael. O seu erro é desprezar os fatos e se deixar guiar pela imaginação".

Não tivera êxito a primeira abordagem, embora depois de uma exposição feita por mim sobre contatos em várias áreas, Lacerda não tivesse aprovado nem desaprovado as conversas, dizendo apenas: "Continuem a conversar, que diálogo não faz mal a ninguém".

Saímos da casa do ex-governador por volta das 4 da manhã, fui levar Rafael em casa e, como sempre fazíamos, ficamos quase duas horas conversando sobre tudo, sentados no carro, pois não é à toa que eu e Rafael somos amigos desde quando ele tinha 17 anos e eu, bem mais velho, 23.

Portanto, quando agora Rafael diz que a frente é elemento de revanchismo e de provocação, é ele que deve uma explicação à opinião pública. Pois antes de qualquer pessoa, antes mesmo de mim ou do que o próprio Lacerda, quem pensou numa união Lacerda-Juscelino (e afinal os dois são os únicos com penetração autêntica na massa, um em cada esfera de ação, já que a liderança do sr. Jango Goulart é multipartida, contestada de vários lados) foi o agora deputado Rafael de Almeida Magalhães.

Poderia citar várias fontes em abono destes fatos. Mas como não quero comprometer ninguém neste momento de perseguições indiscriminadas, dou apenas um nome que tem voz e mandato parlamentar e portanto não pode ser prejudicado: Marcio Moreira Alves, que pensava em se candidatar a deputado, uma das primeiras pessoas a conversar comigo e com Rafael sobre o assunto.

Conversamos, conversamos, alargamos os contatos e quando Carlos Lacerda, já então servindo-se de outros emissários (pois Rafael depois de dizer horrores do presidente Castelo Branco se filiava à ARENA, segundo ele mesmo confessou porque era a única posição que lhe ditava o seu oportunismo político e a sua vontade de "não ficar marginalizado pelos acontecimentos"), entabulou contatos no exterior com Juscelino, a frente caminhava para se estruturar e se afirmar como força atuante, embora esse nome Frente Ampla não existisse e tivesse surgido quase que unanimemente depois da primeira reunião de apenas 8 pessoas realizada, como eu disse, no dia 22 de agosto de 1966. Quem batizou o movimento de "frente ampla"? Os jornais.

De lá para cá, a frente tem resistido a tudo. Vendavais tremendos, incompreensões, oportunismos, hesitações, covardia generalizada e, principalmente, o comodismo dos oposicionistas profissionais, que sabendo que todos os governos precisam pelo menos de um arremedo de oposição para fingir que as peças do jogo democrático continuam intactas ficam sempre à espreita, na escuta, fingindo servir à oposição, mais, na verdade, apenas coonestando tudo o que o governo faz e "recomendando prudência" aos mais afoitos, aos mais corajosos, aos mais lúcidos, aos que compreendem antes dos outros que um país não pode sobreviver dividido, estraçalhado, com seus melhores homens, civis e militares, se agredindo e se destruindo uns aos outros.

O curioso é que tanto o sr. Carlos Lacerda quanto eu sempre fomos considerados destruidores e por isso condenados violentamente. Pois no momento em que fazemos uma abertura democrática procuramos o indispensável diálogo, sem o qual não se fará nada, não se construirá, ou melhor, não se reconstruirá este país, somos condenados outra vez inapelavelmente e pelas mesmas pessoas.

Antigamente éramos acusados de destruição, diziam que não tínhamos serenidade nem capacidade para unir e construir. Pois agora, quando procuramos conciliar (e só pode haver conciliação com a união dos contrários), nos acusam de subversão, de antirrevolucionários e até pior: de contrarrevolucionários. Afinal, o que é que desejam?

A manutenção do mesmo clima que vem desde 1954, com 10 presidentes num período no qual deveriam ter existido apenas 3, a manutenção de um clima de desagregação, que não levará de forma alguma o presidente Costa e Silva a governar com tranquilidade e que, certamente, vai tragá-lo na mesma voragem na qual foram tragados os outros seus infelizes predecessores?

O governo se diz horrorizado com a frente e promete e procura torpedeá-la de todas as maneiras, principalmente pela forma mais antiquada e mais primária, que é a da intimidação.

Mas, se tivesse conselheiros lúcidos e não comensais gulosos e desatentos, o governo daria uma relida no manifesto da Frente Ampla, publicado há meses, e veria que lá, com a assinatura de Juscelino e Lacerda e a concordância tácita de Jango, está dito: "NÃO ADMITIMOS A VOLTA AO PASSADO". E, além de uma convicção e de uma afirmação, isso é uma constatação, pois a História (e os filósofos e os historiadores vivem apregoando isso) prova exuberantemente que o passado não volta nunca. O que acontece é que os que se dizem conselheiros políticos do presidente se constituem num bando de primários, alguns até bem intencionados. Mas um dos piores defeitos do homem é a boa intenção despreparada.

O sr. Humberto Castelo Branco se "repugnava" só com a ideia de que democratas (agora chamados de revolucionários) pudessem fazer acordos e manter entendimentos com Juscelino. Mas muito antes de mim, de Lacerda ou de Rafael, não foi o próprio Castelo que, quando precisava de votos para se "eleger" pelo Congresso, foi conversar com Juscelino na casa do deputado Joaquim Ramos, na presença de Alkmin, Martins Rodrigues, Amaral Peixoto e outros?

Nós conversamos com Juscelino para a elaboração de um manifesto público pregando a paz, a harmonia, a continuidade democrática, a defesa das nossas riquezas, a preservação do produto do trabalho do homem brasileiro, sem a qual não haverá nem progresso nem desenvolvimento, a miséria continuará sendo uma "propriedade" coletiva (a única que nos permitem) e sem enriquecimento do país não haverá enriquecimento individual.

Não adianta o general Moniz de Aragão dizer em tom de arrogância: "Por que iríamos pedir, se éramos a força?" Não eram não. Naquele momento ainda não havia sido dado o golpe dentro da revolução, havia o compromisso de nenhum general se candidatar à sucessão de Jango e a única verdade autêntica era esta: a revolução não tinha nenhum plano nem ideia, e fora transformada em realidade apenas em virtude de um fato: as incríveis primarices do presidente João Goulart, o seu imbecil desafio às forças armadas, mostrando iniludivelmente que ele não queria ninguém como seu sucessor e manobrava para se eternizar no Poder, como sempre fez o seu mestre Getúlio Vargas. Portanto, antes da entrada em campo da CIA, do embaixador Lincoln Gordon e do Departamento de Estado, a revolução só tinha um objetivo: preservar as eleições de outubro de 1965, que todos, sem exceção, acreditavam que Jango não iria realizar.

Nós dialogamos com Juscelino em termos altos. Castelo, ao procurar o ex-presidente, já começava por dividir o Exército, rompendo o compromisso de nenhum general suceder o sr. Jango Goulart. Não é uma suposição, é um fato, que quando as sombras forem sendo afastadas se tornará Histórico: vários generais tiveram verdadeiros ataques de histeria quando souberam que Castelo articulava a sua própria candidatura, pois, sendo ele o mais prestigiado e prestigioso de todos dentro do Exército (isso é inequívoco), sentiam que seria impossível competir com ele, mesmo havendo o tal compromisso de todos se manterem alheios.

Ninguém (pelo menos militar, a não ser do grupo fechadíssimo de Castelo) sentiu que naquele momento a revolução mudava de rumos, ou melhor, adquiria rumos definidos, que não estavam nem nas cogitações nem nos planos dos que durante 3 anos conspiraram contra Jango, uns por uma espécie de fatalidade congênita, outros por idealismo e outros pelas frustrações, ressentimentos e insatisfações que constituem a matéria-prima de quase todos os golpes de estado.

O que queremos, o que quer a Frente Ampla é simples: a instalação de um regime que permita ao povo saber que um presidente eleito terminará o seu mandato no dia e na hora marcados, que depois dele virá um outro também eleito e assim sucessivamente. Chama-se a isso continuidade democrática. E nós, os que lutamos na primeira linha de combate a Jango, precisamente por acreditar que não era isso o que ele queria, temos o direito de reivindicar a redemocratização no país.

Sem isso não haverá trabalho, pois já estamos com um déficit de quase 4 milhões de empregos, esse déficit aumenta à razão de 1 milhão de empregos por ano, e, além de não criarmos novos empregos, ainda vamos eliminando alguns. Sem trabalho não há produção. Sem produção não há desenvolvimento, sem desenvolvimento não há estabilidade, voltamos ao ponto de partida desse círculo vicioso, e nenhum governo pode saber quando terminará o seu mandato ou se será derrubado muito antes da data marcada.

PS - Tudo isso e outras revelações notáveis estão no livro, "Recordações de um Desterrado em Fernando de Noronha". Só que a ditadura, s-a-b-i-a-m-e-n-t-e, não deixou o livro circular.

PS 2 - Intimidou editores como Lacerda (Nova Fronteira) e Alfredo Machado (Record) que não puderam fazer nada. Outras editoras e todas as distribuidoras foram procuradas e intimidadas.

PS 3 - Conseguimos rodar mil exemplares que presenteamos a amigos. Ainda hoje me pedem exemplares, outros querem editá-lo e publicá-lo de verdade.